terça-feira, 20 de junho de 2017

Negação do passado

Como um sujeito que passa – e ganha! – a vida problematizando sobre a organização das pessoas em sociedade, nunca deixei de me atordoar quando lia o questionamento de Jürgen Habermas: como foi possível o Holocausto após o Iluminismo?
O questionamento tem seu impacto; seja ele retórico, seja reflexivo. Esse evento constitui-se como um dos momentos mais difíceis, para mim, de relatá-lo nas aulas que ministro.
Um conjunto que engloba um saco de bobagens racistas, com um monte de incompreensão, saturado de irracionalidade. Tudo isso, com um toque de bilhões de dólares gastos para matar pessoas.
(Não neguei nunca, sou um humanista inveterado – no sentido da crença na possibilidade de melhoria social a partir da possibilidade de uso da razão do ser humano, o que por vezes pode ser encarado como uma ilusão – e não posso compreender o sentido e a existência da defesa do belicismo).
Recordo sempre do maravilhoso filme “A vida é bela”, do italiano genial Roberto Benigni. Acho que com essa história o ator, diretor e roteirista realmente se equiparou – como li na época do lançamento – a um Charlie Chaplin, versão moderna. Ele trata o tema da II Guerra Mundial de uma maneira poética que nos aponta a tristeza humana, e também a possibilidade de salvação pela poesia, pela alegria, pela esperança e pela vontade de melhoria.
Há mais ou menos dois meses, vi no cinema o filme “Negação”, com Rachel Weisz no papel principal. Um filme fortíssimo porque expõe uma doença incurável até agora: a falta de humildade suficiente para assumir erros do passado. O existencialismo passou, as novas gerações – e é possível que mesmo as velhas gerações – não sabem quem foi Sartre; e sua ideia de liberdade consciente, de responsabilidade sobre as ações pessoais, infelizmente, não tocou muita gente. (E foi porque não se quis, nem os homens, nem as políticas educacionais dos governos demasiadamente humanos. Ou seja, não se pode culpar apenas o fato de Sartre não ser tão bom escritor, no que tange sua estética literária).
Voltando ao tema: o filme, baseado em um julgamento real, conta a história de uma professora americana, Deborah Lipstadt, judia, que estudava o Holocausto. Ela se vê envolvida em um processo judicial na Inglaterra, iniciado por um pesquisador autodidata sobre o mesmo tema, David Irving, interpretado por Timothy Spall, mas com uma posição contrária: ele defendia um revisionismo histórico que demonstrasse a impossibilidade das câmaras de gás nos campos de concentração e da morte dos supostos 6 milhões de judeus.
O motivo do processo: a professora teria desqualificado as obras do pesquisador e, desde então, as editoras lhe fecharam as portas; por isso ele se encontrava com dificuldades financeiras, haja vista as publicações serem a base de seu trabalho.
Um advogado respeitado da Inglaterra, interpretado por Andrew Scott, procura a professora, oferecendo-se para representá-la, juntamente com outro advogado importante, brilhantemente feito por Tom Wilkinson. Mas há um problema: no sistema jurídico inglês caberia a ela, a acusada, comprovar sua inocência e não ao sujeito autor do processo a culpabilidade dela.
O que era para ser um julgamento sobre acusações pessoais, torna-se um tribunal sobre a história. Teriam ou não existidos, de fato, os campos de concentração nazistas? Os judeus foram mortos nas câmaras de gás? O que os historiadores – e os escritores que publicaram livros sobre o tema, a exemplo de Primo Levi – disseram ao longo dos anos está coerente com uma possível verdade histórica?
Conseguirá ela demonstrar que o Holocausto matou tanta gente ou ele provará as falhas numéricas e estruturais dos supostos canais de gás nos campos? Segundo ele, há provas cabais para tais afirmações.
Em um mundo em que a cada dia comprovamos a máxima (lembrada há poucos dias pelo meu amigo, e também historiador, André Sarkis, que me serviu como um tapa na cara em um momento em que eu usava a retórica contra os absurdos irracionais dos nossos tempos): a história não significa evolução. Isso já sabem os bons historiadores teóricos durante o século XX, quando criticavam justamente os positivistas do século XIX.

“Negação” se torna um filme necessário para que pensemos como nós lidamos com o passado, ainda que o filme, em estrutura rítmica, tenha algumas falhas, deixando-nos cansados em algumas cenas. Mas sua discussão é, a meu ver, fundamental, afinal Brecht estava certo ao afirmar que “a cadela do fascismo está sempre no cio”.



(Publicado originalmente em Jornal Opa! em 18/maio-2017. Disponível em: http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/256/?Negacao-do-passado.html) 

domingo, 11 de junho de 2017

Para salvar o mundo


Fiódor Dostoievski disse, certa vez, que “a beleza salvará o mundo”. E isso, pensando em seu niilismo e tristeza melancólica, era sua esperança. No futuro, as coisas seriam tão estranhamente absurdas que, talvez, apenas a beleza pudesse salvar o que restasse de mundo. Seria algo como a “flor que nasce no asfalto”, como dizia o nosso amado Drummond. 
Se o que é belo deve ser celebrado, quando encontramos algo belo e que nos agrada de maneira pessoal (porque nem tudo o que é belo pode nos agradar pessoalmente; e nem tudo que nos agrada é esteticamente belo), temos que celebrar mais ainda. Oswaldo Montenegro disse na sua música gostar de “cantora bem rouca” e nisso eu concordo plenamente com ele. Acho que uma das coisas que mais me agrada em momentos de desânimo e revolta é escutar Janis Joplin cantando “Oh, Lond, won’t you buy me a Mercedes Benz?” Nesse momento, minha raiva passa e eu coloco essa ironia no mesmo patamar dos livros do Bruxo Machado. Geralmente fico feliz e rindo e me perguntando – tanto sobre Joplin quanto sobre Machado: como eles foram capazes de fazer algo assim?
Mas, enfim, se uma cantora rouca pode nos deixar extasiados, creio que um dos melhores exemplos que me ocorreu na semana passada foi o show da cantora francesa Zaz, em Porto Alegre. Da outra vez que ela veio, não fui ao show. Mas gostava das suas músicas desde aquela época, principalmente o seu disco com músicas sobre Paris. Talvez um dos discos que mais me agradam as músicas todas.
Zaz (cujo nome é Isabelle Geffroy) veio a Porto Alegre de novo. Cantora do interior da França, inspirada nas canções de Edith Piaf, Charles Aznavour, Claude Nougaro, que um dia deixou a sua cidade, Chambray-lès-Tours, em direção a Paris para tentar a vida cantando, teve a sorte de encontrar o cantor e compositor Raphaël Haroche, que escreveu várias músicas pensando em sua voz. A mesma voz que, diga-se de passagem, rendeu-lhe algumas críticas. O que importa é que ela pegou a música francesa, deu um pitada de jazz, suingue, rouquidão e muita alegria de estar no palco.


Cheguei ao Auditório Araújo Viana ansioso com o espetáculo. Tinha visto algumas cenas no Youtube.com e o show Mise en Scène parecia uma experiência visual interessantíssima. Não estava errado. Com muitas cores, muitas projeções, muito uso do recurso imagético, a construção do show é um espetáculo à parte.
Mas é a Zaz que deixa qualquer um bobo. Se Aristóteles acreditava que cada pessoa tem um direcionamento natural e que a eudaimonia, a felicidade, era fazer aquilo para o que se nasceu, posso dizer que Zaz acertou em cheio. Eu nunca tinha visto ninguém tão feliz em um palco como ela. Há as pessoas que dominam o palco e o conhecem como a palma das suas mãos. A Ivete Sangalo é uma dessas pessoas. Há também aqueles em que você sabe que, mesmo não parecendo, têm o controle sobre tudo o que está ao redor, como no show de comemoração de Caetano e Gil ou em algum espetáculo de Maria Bethânia.
Entretanto, Zaz é feliz demais – e podemos notar isso. Fala desesperadamente, mesmo com a maior parte das pessoas não entendendo direito o que ela está dizendo – um tanto porque não fala francês e outro tanto porque não consegue pegar as frases rápidas e seu sotaque de fora de Paris. Sabe que naquele momento, ela está transbordando felicidade para um monte de gente. Dança loucamente a cada música. E não dança somente para o público, mas também para ela. De vez em quando ela sai de cena e, quando nossos olhos conseguem encontrá-la, está atrás da bateria dançando.
Talvez como uma mulher do século XXI que defende causas, aproveitou sua visibilidade para fazer duas apresentações de ONG’s porto-alegrenses no meio do espetáculo. Fez questão de fazer discurso sobre a importância daqueles trabalhos.
Sabe que aquele palco é o seu lugar e sabe que não quer deixá-lo por nada. Sabe que a sua arte é repleta de beleza. Se não entendemos direito porque algo é considerado belo, se não achamos mais ser possível existir algo bonito em meio ao famigerado século XXI e seu ódio e suas idiossincrasias... escutar a voz rouca de Zaz pode ajudar a compreender o primeiro ponto e amenizar a agonia do segundo.
O palco é tão seu que ela não vai embora nem quando o show acaba. Em Porto Alegre ela ficou depois do show assinando camisetas que lhe eram jogadas, sentada no tablado, enquanto os músicos e o público saiam.
Zaz ajudará a salvar o mundo. Só precisamos de mais Zaz surgindo por aí...


 (Texto publicado originalmente em Jornal Opa! em 03 de abril de 2017: http://jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/242/?Para-salvar-o-mundo.html)

domingo, 4 de junho de 2017

Fabíola lê livros de filosofia



Tenho um grande amigo chamado Fábio. Por ironia do destino, namora uma mulher chamada Fabíola. Ela tornou-se uma amiga fundamental e, com ela, posso conversar sobre todos os assuntos que esta coluna receberá com meu nome. Fabíola é portenha e mora – devido ao seu trabalho – um tanto aqui em Porto Alegre e um tanto em Buenos Aires. Um sonho, para mim. Além do fato que de Fabíola lê livros de filosofia.
Quase todas as vezes em que estive em Buenos Aires, dei sorte que a Fabíola estava por lá também. Como o trabalho dela é bem flexível em horários, sempre nos encontramos para passear pela cidade. Brincamos que nos vemos mais lá do que aqui. E eu tenho a sorte de poder ter uma guia que já me mostrou toda a cidade, além de me explicar como funciona a divisão dos números pelas ruas e sua lógica, o que permite que qualquer um saiba em que local da cidade está somente observando os números dos prédios nas ruas.
Foi com ela que eu aprendi que a Feira do Livro de Buenos Aires fica todo ano competindo com a da Cidade do México para ver qual das duas será a maior. A mexicana eu não conheço, mas a portenha eu já fui duas vezes e posso garantir: é uma coisa inimaginável! Sem falar nas presenças: Paul Auster, Coetzee, Saramago, Susan Sontag, Vargas Llosa, Alberto Manguel e Alessandro Baricco esse ano, entre tantas outras personalidades.
Na última vez que estive lá, nos encontramos e fomos conhecer o Once, a parte dos bairros de trabalhadores e almoçamos em um Bodegón tradicional, com cerveja Quilmes e chorizo por 20,00 reais. No caminho, pegando o metro, em determinado momento Fabíola procurou algo em sua bolsa e achou também um livro. Era Cinismos. Retrato de los filosofos llamados perros, do filósofo francês Michel Onfray. Ela me disse que eu precisava ler, porque era muito bom.
Fiquei pasmado com isso. Fabíola é uma leitora voraz. Claramente é interessada em livros de ciências sociais, porque estudara isso na graduação. Mas não trabalha com isso. Ela é analista de sistemas. Mas Fabíola lê livros de filosofia quando não está ocupada.
Desde a primeira viagem que fiz a Argentina, sabia por amigos que lá era um lugar de muitas livrarias. O que é uma maravilha, porque caminhamos por qualquer bairro e, de repente, topamos com uma loja de livros, novos ou usados. Mas também pude notar que as pessoas carregam livros na rua, dentro de suas bolsas e até mesmo os comerciantes de rua, quando não estão atendendo a algum cliente, permanecem em frente aos seus produtos lendo algo.
Certa vez, em uma reportagem na Revista da Cultura (edição 90 – janeiro/2015), o autor, Christian Petermann, trazia um bom argumento sobre os motivos de o cinema argentino ser considerado internacionalmente a frente, por exemplo, em relação ao cinema brasileiro. Um dos motivos era o fato de que os argentinos têm uma média de leitura muito mais elevada que os brasileiros, cujos dados são pífios. Outro fator era a não existência de novelas como as da Globo, que, por terem enredos mais simples, desacostumavam os espectadores brasileiros a tramas mais densas, segundo o autor da reportagem. Essas ideias já faziam muito sentido pra mim, mas ao visitar o país hermano pude comprovar observando os costumes dos habitantes.
Era algo extraordinário ver que minha amiga estava lendo um livro de filosofia enquanto andava de metro, de ônibus ou enquanto sentava em um dos maravilhosos cafés portenhos para tomar algo e comer uma medialuna. Ela me falava que o autor era muito bom, que ele tinha escrito vários livros e que eu iria me interessar muito.
Durante todos esses anos dando aula, sempre defendi com unhas e dentes que meus alunos deveriam ler. Sempre discursei em sala que, em um país que não lê, como é o nosso, os alunos deveriam receber uma educação onde, primeiramente, eles aprendessem a ler e tomassem gosto pela coisa. Por isso sempre indiquei livros relacionados a História como O Chalaça, de José Roberto Torero, engraçadíssimo e prazeroso, para falar do período de D. Pedro I; ou O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, mais divertido ainda, sobre o período de D. Pedro II. Para alunos que, em sua maioria, não fazem a menor ideia de como começar a ler, isso pode ajudá-los. Machado de Assis foi e sempre será o nosso maior prosador, mas um aluno de Ensino Médio que não entende o que é ironia fina – porque está envolto em uma série de coisas bizarras e simples na internet – não poderá compreender a graça e beleza do texto machadiano.
Em um país como o nosso, há: 1º) que fazer com que as pessoas comecem a ler; 2º) que não parem de ler; e 3º) que abram as possibilidades para ver Machado – e Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Luiz Ruffato etc – como uma grande aventura depois de um tempo de leitura.
Assim vamos mudando, até que um dia possamos ver as pessoas lendo filosofia nos bancos dos ônibus ou dos metros. Talvez isso melhore nossa política, nosso cinema (que já avança muito nos últimos anos!), nossos alunos enquanto pessoas críticas e conscientes e não apenas como seres rasos em argumentação e compreensão de mundo.
E quem sabe as coisas mudem tanto, que a Fabíola não possa mais responder quando alguém lhe diz que nós temos 5 Copas do Mundo mostrando uma mão aberta: “E nós temos 5 Prêmios Nobel”. A conversa geralmente acaba por aí...


(A tempo: deveriam ter tido mais 3, com Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares.)

terça-feira, 23 de maio de 2017

Claire Underwood é mais importante em House of Cards do que Francis?

      Esses tempos atrás eu me surpreendi com duas coisas: saiu a notícia de que Robin Wright (a atriz que interpreta Claire Undewood em House of Cards) exigiu dos produtores um salário equiparado ao de Kevin Spacey para continuar na série e a enxurrada de comentários sobre o assunto nas redes sociais. Aprendi, com isso, duas coisas também: gosto cada vez mais de Robin Wright e ler comentários em matérias publicadas pode gerar câncer – ou, no mínimo, azia e refluxo.

       Nessa coluna, começo com um questionamento sobre ser a personagem de Robin mais importante que a de Spacey. Acredito que a partir da temporada dois, realmente são, um como o outro, igualmente importantes em protagonismo. Mas quero me atentar à primeira temporada da série, em que Claire é, certamente, mais importante do que Francis.

       Para nós, brasileiros, isso pode parecer estranho. Mas nós não compreendemos como funciona a eleição americana, ainda que a cada quatro anos apareçam tentativas e mais tentativas de jornalistas de nos explicarem a eleição por Estado, por delegado eleitoral, por voto não obrigatório etc. Não tentarei explicar essa parte do processo por aqui por questões de espaço da coluna...

       Mas quero partir do caso Watergate, que foi um grande escândalo de corrupção envolvendo o Presidente Richard Nixon a partir de 1972, com a denúncia de algumas gravações envolvendo o presidente com o recebimento de propina desde a época da candidatura, e culminando com sua renúncia em 1974. Após esse evento, houve uma “reforma” política feita pelo Congresso. O que eles determinaram era que o financiamento de campanha de quaisquer candidatos passariam a ter um teto, que é bem baixo, diga-se de passagem, para doações pessoais ou de empresas. Levando em consideração que nos EUA não há leis que imponham propagandas políticas gratuitas, o gasto com a campanha pode ser estratosférico – como já foi! Na disputa entre Obama e McCain, por exemplo, cada um gastou mais de um bilhão de dólares entre as prévias e a campanha.

      Nesse ponto entram os “doadores fantasmas”. Sempre se encontra uma brecha na lei para permitir – ou pelo menos justificar – algum ato ilícito, porque, afinal de contas, a lei não é perfeita, mítica, única e universal. No caso dos EUA, qualquer pessoa ou instituição podem fazer campanha política para seu candidato. Não à toa alguns meios de comunicação abertamente dão seu apoio a um ou outro candidato (há, inclusive, uma ótima matéria de Daniela Pinheiro, chamada “O jornalismo pós-Trump”, na revista piauí, edição 123, contando sobre os jornais que cobriam a eleição de Trump e o sentimento de dever não cumprido e erro na exposição sobre o candidato quando o resultado deu a vitória ao republicano). A campanha que essas organizações podem fazer permite até mesmo compra de horários na tv, que lá custam uma fortuna inimaginável. A única restrição: não aparecer o nome do candidato. Assim, há empresas que fazem comerciais – pró-alguém ou contra alguém – que saem nos horários nobres. Não aparecem nomes, mas todos entendem sobre quem ou o que se tratam.

      As ONG’s fazem muito isso. Um “doador fantasma” pode doar milhões para um ONG, porque lei nenhuma proíbe a doação. E a ONG faz a campanha para algum candidato. Assim, as ONG’s podem ser usadas como uma espécie de lavagem de caixa 2, caso possamos conceituar assim. O protagonismo de Claire Underwood aparece aqui.

      Na primeira temporada, grande parte das cenas em que ela aparece acontecia na ONG de sua coordenação. Assim, podemos compreender que ela era o receptáculo de dinheiro para propaganda que permitia que Francis Underwood pudesse usar como argumento para conseguir doações de empresas em troca de benefícios nas licitações, decididas pelos eleitos com essa “ajuda”. Como aquele congressista poderia ter se tornado tão importante e tão poderoso dentro do Congresso, vindo de onde vinha e não sendo popular? O que ele tinha a oferecer aos políticos americanos era um esquema muito bem organizado, baseado na cooptação de dinheiro para campanha e para propina, que era lavado pela ONG da sua esposa, que era quem mantinha tudo em ordem para que não fosse nada descoberto. Uma dupla, onde um era responsável direto pelo que o outro fazia. Mas ela era mais importante, porque lidava com o dinheiro. O poder era, de fato, compartilhado por eles, mas Francis permanecia nas mãos da esposa.

      Nenhum detalhe em política pode ser subjugado. Nada está ali por acaso. As relações políticas são sempre mais complexas do que imaginamos quando estamos discutindo numa mesa de bar ou em um jantar com amigos ou família.


      E você achando que ela estava preocupada com a falta de água na África, não?





(Publicado orignalmente no Jornal Opa! http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/235/?Claire-Underwood-e-mais-importante-em-House-of-Cards-do-que-Francis.html em 17/03/2017)

Hollywood à beira da falência

     Você, que gosta de cinema – ou talvez até que não goste tanto assim – já ouviu falar certamente em filmes como O Poderoso Chefão, TaxiDriver, Bonnie & Clyde e Touro Indomável. Mas há na realização desses filmes algo que pode ser questionado se levarmos em consideração o contexto dos EUA da época: devido aos seus enredos, como é que esses filmes puderam ser feitos?
     Os EUA viviam o auge da Guerra Fria e a disputa ideológica entre capitalistas e comunistas estava a todo vapor. Uma das armas usadas era justamente a produção cultural. Filmes e músicas estadunidenses eram utilizados para conseguir mostrar ao mundo como o lado capitalista era fantástico – e o mesmo acontecia do lado da URSS para o bloco socialista. A produção cultural norte-americana tentava demonstrar o tão famoso american way of life, com carros enormes, que gastam litros de gasolina, casas com quintais também enormes, cozinha com máquina de lavar louça etc, etc, etc. Vladimir Nabokov eternizou uma crítica no seu clássico Lolita chamando essa imagem construída de “o sonho Doris Day” dos americanos.
      Mas os anos 50 foram difíceis para a produção cinematográfica. O número de espectadores despencou das salas de cinema. Foram milhões e milhões de pessoas que simplesmente pararam de ir às salas de projeção. Era uma situação pior do que no período da Grande Depressão, pós Crise de 1929. O motivo? O advento e popularização da televisão. Com ela era muito mais fácil: ficava-se em casa, vendo coisas diversas, mudando apenas o canal quando não se agradava com algo que estava passando.
      Hollywood sentiu o baque. Os filmes não eram mais vistos e a indústria – porque sempre foi uma indústria! – sentia no bolso os problemas resultantes dessa diminuição. Faltou dinheiro para os produtores, para os diretores, para os atores. Para todo mundo, resumindo a história.


     Nesse ponto entra o maravilhoso livro Como a geração sexo-drogas-e-rock’n roll salvou Holywood: Easy Riders, Raging Bulls, de Peter Biskind. Tendo sido editor-executivo da revista Première e editor-chefe da American Film, conheceu quase todo mundo da indústria e pode escrever sobre cinema em espaços do The New York Times, Los Angeles Times, The Washington Post, Rolling Stone entre tantos outros meios.
    O livro já traz no título duas obras clássicas: Easy Rider (que no Brasil apareceu como Sem Destino) conta a história de dois sujeitos em suas motos, atravessando uma parte dos EUA, carregando drogas; e Raging Bull (no Brasil:  Touro Indomável), sobre o boxeador Jake LaMotta, contanto desde sua ascensão até sua decadência. Ambos filmes são lendários, principalmente por mostrarem um país que não era aquilo que os políticos queriam vender. Violência, drogas e gente sem destino certo nos caminhos da vida. Era uma outra América; sem o sonho americano, claro.
     Aqui entra o questionamento inicial: como foi possível fazer filmes como todos esses clássicos dos anos 60 e 70?
     A crise financeira e a quase falência dos estúdios de Holywood frente ao advento e domínio da tv fizeram com que os produtores ficassem em uma encruzilhada: ou continuavam fazendo filmes iguais aos que já eram feitos e com isso construíam a definitiva ruína econômica da indústria cinematográfica... ou apostavam em jovens, com ideias novas de dramaturgia, muita droga e muito álcool no sangue, para que eles dessem uma mexida geral nas produções.
     O livro de Biskind traz as histórias – públicas ou privadas, reais ou imaginadas – de todo esse período, que compreende os anos 60, 70, com Coppola, Scorsese, Robert Altman, Polanski, Kubrick (além de todos os atores e atrizes que até hoje nos encantam e estão em nosso imaginário), onde todo mundo ficou muito louco, muito briguento, muito chapado e muito, mas muito criativo, realizando alguns dos maiores filmes de toda história do cinema mundial. O livro vai até os anos 80, na era dos blockbusters, com Tubarão e Star Wars, onde alguns nerds como George Lucas e Steven Spielberg começaram a trazer mais dinheiro do que os loucos da década anterior.

     Para quem é amante do cinema não há escapatória, tem que ler. Para quem não é, vai virar. É um livro longo: são mais de 450 páginas com letra miúda. Mas garanto que você vai ler como se ficasse preso em cada página, querendo saber a próxima história de loucura, briga, amor, sexo, droga ou rock’n roll, como, por exemplo, aquela vez em que o Dustin Hoffmann saiu correndo nu pelos corredores do quarto do hotel, gritando que...


(Originalmente em Jornal Opa! http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/230/?Hollywood-a-beira-da-falencia.html, em 08/03/2017)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Afinal, não me pareceu um musical...



Eu fui assistir ao filme La La Land por duas razões: a primeira era porque eu li várias reportagens dizendo que ele era um filme para o verão, em que todo mundo ia se divertir e porque era um forte candidato a vários Oscars; a segunda é porque eu queria ver se era tudo isso mesmo.
Ainda mais que, em uma conversa com um amigo, fiquei sabendo que o diretor e autor do roteiro era o mesmo cara que tinha feito Whiplash, que foi um dos filmes mais incríveis e tensos que assisti nos últimos tempos. Meu amigo me contou sobre o fato de o diretor ter pretendido fazer La La Land antes, mas nenhum estúdio abriu as portas para um estreante com o intuito de gastar tanto dinheiro como seria necessário para aquele musical. Por isso, Whiplash foi escrito com raiva, para provar que ele podia fazer. Deu certo. Foi um monstro na direção com baixo orçamento. O que poderia fazer agora que tinha conseguido rios de dinheiro?
Confesso que fiquei desesperado no início do filme. Aquela cena inicial me deixou de cabelo em pé e um prenúncio de sono. Mas não sou assim tão suscetível a esse tipo de desencorajamento fílmico. Já assisti a filmes franceses, iugoslavos e iranianos que me pediram mais do que um musical hollywoodiano. Não poderia simplesmente perder meu ingresso com uma cochilada que depois inviabilizaria a compreensão da trama. Ainda bem que não dormi.
A história poderia parecer bobinha. Uma aspirante a atriz, que trabalha em um café, conhece um músico revoltado, que não consegue estabilidade, cujo sonho é abrir um bar de jazz. Seu intuito eu gosto muito. Ele quer um bar ao estilo clássico, porque acredita que o jazz cada vez mais está morrendo e ele vê isso como uma catástrofe – principalmente porque anda surgindo um tipo de jazz de novidade, mesclando uns sons eletrônicos, que colocariam Charlie Parker a se enfiar mais e mais nas drogas, por motivo de tristeza com isso.
Eles acabam se relacionando e a trama vai tomando seus caminhos. Não vou relatar mais, porque haveria revolta.
Mas o que mais me deixou impressionado ao sair da sala do cinema foi todo o questionamento que os rumos da história me fizeram ter. Sai atordoado, sem conseguir andar direito, perdendo os sentidos de direção. O silêncio me tomou por horas e eu só podia ficar pensando nesses problemas que me surgiram.
Aos que me conhecem e já tiveram conversas comigo, sabem o meu apreço pelo existencialismo. O sartreano, teoricamente, e o de Camus, literariamente (ainda que ele não se enquadrasse oficialmente a essa corrente de pensamento). Ao pensar n’O Estrangeiro, de Camus, e em todo o fato de o personagem principal não saber responder os motivos de suas ações para as pessoas que o questionavam, lembrei-me do filme. Ao pensar na teoria de Sartre, em que o sujeito deve ter a consciência de suas ações e, portanto, que as reações que são advindas dessas ações tomadas pelo próprio sujeito são, perfeitamente, responsabilidade do sujeito – que não deve fugir da responsabilidade de seus atos – pensei no filme.
O que quero dizer com tudo isso?
Foi um filme que me fez pensar sobre três problemas fundamentais:

a) a fragilidade da vontade pessoal frente à manutenção de um relacionamento amoroso. Ou seja, em quais lugares se escondem as vontades que baseavam uma vida única quando se assume uma vida em conjunto? Eu poderia citar inúmeros exemplos da vida real, de pessoas que me cercam. O que fazemos com aquele sonho de ser astronauta, jogador de futebol, piloto de caças (são exemplos, obviamente, exagerados) quando lidamos com o que se pode ser construído na vida a dois? Talvez seja esse um dos motivos pelos quais Bauman apontava para a modernidade como a época em que haveria cada vez mais uma liquidez nas relações humanas – e nos relacionamentos amorosos.

b) a imposição das necessidades da vida prática frente a essas mesmas vontades pessoais. Para mim, a história ensinou algumas coisas que postulam verdades incontestáveis – principalmente para alguém que já passou por algum tipo de problema financeiro. Por exemplo: a crise de 1929, em que o Brasil foi afetado de maneira bastante forte na exportação do café – isso gerou a crise da República Velha, a derrota de Getúlio nas eleições e a tomada de poder com a “Revolução” de 30, que para sanar o problema financeiro do café, resolveu queimá-lo, para rarear o produtor e, portanto, aumentar seu valor. O que isso demonstra a qualquer leitor: em épocas de crise, come-se arroz e dispensa-se a sobremesa (o café). Mas o que isso tem a ver com La La Land? A vida nos impõe ações práticas que vão desde o pagamento do aluguel até a compra dos alimentos para que não passemos fome, logo, como manter as nossas vontades pessoais (podemos aqui também chamá-las de sonhos) frente a essas necessidades?

c) a aceitação frente às mudanças que o percurso da vida impõe à nossa própria existência. É sabido que sofremos aquilo que as nossas decisões nos direcionaram – num existencialismo puro. E que, mesmo tendo tido outro caminho tomado, este caminho imporia novos sofrimentos que são inerentes a essas outras escolhas. A vida é, portanto, saber que cada caminho nos direciona para um tipo de felicidade e também traz consigo um tipo de tristeza. Outro caminho tomado traria outra – ou outras – felicidade, carregada de um saco de tristeza diferente. Quando penso no filme, penso em: há possibilidade do uso da razão para a compreensão das alegrias e das tristezas que trouxeram os caminhos que escolhemos? Há como usar da razão? Disso não tenho dúvida. Só não acho que essa seja a regra; muito pelo contrário. Li em algum lugar que os romanos só foram o que foram, porque não tiveram que estudar latim; já nasciam falando. Acho que algo parecido com a humanidade em relação ao viver.

Por fim, não deixem de assistir ao filme. Afinal, não me pareceu um musical...