Como um sujeito que passa – e ganha! – a
vida problematizando sobre a organização das pessoas em sociedade, nunca deixei
de me atordoar quando lia o questionamento de Jürgen Habermas: como foi
possível o Holocausto após o Iluminismo?
O questionamento tem seu impacto; seja ele
retórico, seja reflexivo. Esse evento constitui-se como um dos momentos mais
difíceis, para mim, de relatá-lo nas aulas que ministro.
Um conjunto que engloba um saco de
bobagens racistas, com um monte de incompreensão, saturado de irracionalidade.
Tudo isso, com um toque de bilhões de dólares gastos para matar pessoas.
(Não neguei nunca, sou um humanista
inveterado – no sentido da crença na possibilidade de melhoria social a partir
da possibilidade de uso da razão do ser humano, o que por vezes pode ser
encarado como uma ilusão – e não posso compreender o sentido e a existência da
defesa do belicismo).
Recordo sempre do maravilhoso filme “A
vida é bela”, do italiano genial Roberto Benigni. Acho que com essa história o
ator, diretor e roteirista realmente se equiparou – como li na época do
lançamento – a um Charlie Chaplin, versão moderna. Ele trata o tema da II
Guerra Mundial de uma maneira poética que nos aponta a tristeza humana, e
também a possibilidade de salvação pela poesia, pela alegria, pela esperança e
pela vontade de melhoria.
Há mais ou menos dois meses, vi no cinema
o filme “Negação”, com Rachel Weisz no papel principal. Um filme fortíssimo
porque expõe uma doença incurável até agora: a falta de humildade suficiente
para assumir erros do passado. O existencialismo passou, as novas gerações – e
é possível que mesmo as velhas gerações – não sabem quem foi Sartre; e sua
ideia de liberdade consciente, de responsabilidade sobre as ações pessoais,
infelizmente, não tocou muita gente. (E foi porque não se quis, nem os homens,
nem as políticas educacionais dos governos demasiadamente humanos. Ou seja, não
se pode culpar apenas o fato de Sartre não ser tão bom escritor, no que tange
sua estética literária).
Voltando ao tema: o filme, baseado em um
julgamento real, conta a história de uma professora americana, Deborah Lipstadt,
judia, que estudava o Holocausto. Ela se vê envolvida em um processo judicial
na Inglaterra, iniciado por um pesquisador autodidata sobre o mesmo tema, David
Irving, interpretado por Timothy Spall, mas com uma posição contrária: ele
defendia um revisionismo histórico que demonstrasse a impossibilidade das
câmaras de gás nos campos de concentração e da morte dos supostos 6 milhões de
judeus.
O motivo do processo: a professora teria
desqualificado as obras do pesquisador e, desde então, as editoras lhe fecharam
as portas; por isso ele se encontrava com dificuldades financeiras, haja vista
as publicações serem a base de seu trabalho.
Um advogado respeitado da Inglaterra,
interpretado por Andrew Scott, procura a professora, oferecendo-se para
representá-la, juntamente com outro advogado importante, brilhantemente feito
por Tom Wilkinson. Mas há um problema: no sistema jurídico inglês caberia a
ela, a acusada, comprovar sua inocência e não ao sujeito autor do processo a
culpabilidade dela.
O que era para ser um julgamento sobre
acusações pessoais, torna-se um tribunal sobre a história. Teriam ou não
existidos, de fato, os campos de concentração nazistas? Os judeus foram mortos
nas câmaras de gás? O que os historiadores – e os escritores que publicaram
livros sobre o tema, a exemplo de Primo Levi – disseram ao longo dos anos está
coerente com uma possível verdade histórica?
Conseguirá ela demonstrar que o Holocausto
matou tanta gente ou ele provará as falhas numéricas e estruturais dos supostos
canais de gás nos campos? Segundo ele, há provas cabais para tais afirmações.
Em um mundo em que a cada dia comprovamos
a máxima (lembrada há poucos dias pelo meu amigo, e também historiador, André
Sarkis, que me serviu como um tapa na cara em um momento em que eu usava a
retórica contra os absurdos irracionais dos nossos tempos): a história não
significa evolução. Isso já sabem os bons historiadores teóricos durante o
século XX, quando criticavam justamente os positivistas do século XIX.
“Negação” se torna um filme necessário
para que pensemos como nós lidamos com o passado, ainda que o filme, em
estrutura rítmica, tenha algumas falhas, deixando-nos cansados em algumas
cenas. Mas sua discussão é, a meu ver, fundamental, afinal Brecht estava certo
ao afirmar que “a cadela do fascismo está sempre no cio”.
(Publicado originalmente em Jornal Opa! em 18/maio-2017. Disponível em: http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/256/?Negacao-do-passado.html)
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