terça-feira, 20 de junho de 2017

Negação do passado

Como um sujeito que passa – e ganha! – a vida problematizando sobre a organização das pessoas em sociedade, nunca deixei de me atordoar quando lia o questionamento de Jürgen Habermas: como foi possível o Holocausto após o Iluminismo?
O questionamento tem seu impacto; seja ele retórico, seja reflexivo. Esse evento constitui-se como um dos momentos mais difíceis, para mim, de relatá-lo nas aulas que ministro.
Um conjunto que engloba um saco de bobagens racistas, com um monte de incompreensão, saturado de irracionalidade. Tudo isso, com um toque de bilhões de dólares gastos para matar pessoas.
(Não neguei nunca, sou um humanista inveterado – no sentido da crença na possibilidade de melhoria social a partir da possibilidade de uso da razão do ser humano, o que por vezes pode ser encarado como uma ilusão – e não posso compreender o sentido e a existência da defesa do belicismo).
Recordo sempre do maravilhoso filme “A vida é bela”, do italiano genial Roberto Benigni. Acho que com essa história o ator, diretor e roteirista realmente se equiparou – como li na época do lançamento – a um Charlie Chaplin, versão moderna. Ele trata o tema da II Guerra Mundial de uma maneira poética que nos aponta a tristeza humana, e também a possibilidade de salvação pela poesia, pela alegria, pela esperança e pela vontade de melhoria.
Há mais ou menos dois meses, vi no cinema o filme “Negação”, com Rachel Weisz no papel principal. Um filme fortíssimo porque expõe uma doença incurável até agora: a falta de humildade suficiente para assumir erros do passado. O existencialismo passou, as novas gerações – e é possível que mesmo as velhas gerações – não sabem quem foi Sartre; e sua ideia de liberdade consciente, de responsabilidade sobre as ações pessoais, infelizmente, não tocou muita gente. (E foi porque não se quis, nem os homens, nem as políticas educacionais dos governos demasiadamente humanos. Ou seja, não se pode culpar apenas o fato de Sartre não ser tão bom escritor, no que tange sua estética literária).
Voltando ao tema: o filme, baseado em um julgamento real, conta a história de uma professora americana, Deborah Lipstadt, judia, que estudava o Holocausto. Ela se vê envolvida em um processo judicial na Inglaterra, iniciado por um pesquisador autodidata sobre o mesmo tema, David Irving, interpretado por Timothy Spall, mas com uma posição contrária: ele defendia um revisionismo histórico que demonstrasse a impossibilidade das câmaras de gás nos campos de concentração e da morte dos supostos 6 milhões de judeus.
O motivo do processo: a professora teria desqualificado as obras do pesquisador e, desde então, as editoras lhe fecharam as portas; por isso ele se encontrava com dificuldades financeiras, haja vista as publicações serem a base de seu trabalho.
Um advogado respeitado da Inglaterra, interpretado por Andrew Scott, procura a professora, oferecendo-se para representá-la, juntamente com outro advogado importante, brilhantemente feito por Tom Wilkinson. Mas há um problema: no sistema jurídico inglês caberia a ela, a acusada, comprovar sua inocência e não ao sujeito autor do processo a culpabilidade dela.
O que era para ser um julgamento sobre acusações pessoais, torna-se um tribunal sobre a história. Teriam ou não existidos, de fato, os campos de concentração nazistas? Os judeus foram mortos nas câmaras de gás? O que os historiadores – e os escritores que publicaram livros sobre o tema, a exemplo de Primo Levi – disseram ao longo dos anos está coerente com uma possível verdade histórica?
Conseguirá ela demonstrar que o Holocausto matou tanta gente ou ele provará as falhas numéricas e estruturais dos supostos canais de gás nos campos? Segundo ele, há provas cabais para tais afirmações.
Em um mundo em que a cada dia comprovamos a máxima (lembrada há poucos dias pelo meu amigo, e também historiador, André Sarkis, que me serviu como um tapa na cara em um momento em que eu usava a retórica contra os absurdos irracionais dos nossos tempos): a história não significa evolução. Isso já sabem os bons historiadores teóricos durante o século XX, quando criticavam justamente os positivistas do século XIX.

“Negação” se torna um filme necessário para que pensemos como nós lidamos com o passado, ainda que o filme, em estrutura rítmica, tenha algumas falhas, deixando-nos cansados em algumas cenas. Mas sua discussão é, a meu ver, fundamental, afinal Brecht estava certo ao afirmar que “a cadela do fascismo está sempre no cio”.



(Publicado originalmente em Jornal Opa! em 18/maio-2017. Disponível em: http://www.jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/256/?Negacao-do-passado.html) 

domingo, 11 de junho de 2017

Para salvar o mundo


Fiódor Dostoievski disse, certa vez, que “a beleza salvará o mundo”. E isso, pensando em seu niilismo e tristeza melancólica, era sua esperança. No futuro, as coisas seriam tão estranhamente absurdas que, talvez, apenas a beleza pudesse salvar o que restasse de mundo. Seria algo como a “flor que nasce no asfalto”, como dizia o nosso amado Drummond. 
Se o que é belo deve ser celebrado, quando encontramos algo belo e que nos agrada de maneira pessoal (porque nem tudo o que é belo pode nos agradar pessoalmente; e nem tudo que nos agrada é esteticamente belo), temos que celebrar mais ainda. Oswaldo Montenegro disse na sua música gostar de “cantora bem rouca” e nisso eu concordo plenamente com ele. Acho que uma das coisas que mais me agrada em momentos de desânimo e revolta é escutar Janis Joplin cantando “Oh, Lond, won’t you buy me a Mercedes Benz?” Nesse momento, minha raiva passa e eu coloco essa ironia no mesmo patamar dos livros do Bruxo Machado. Geralmente fico feliz e rindo e me perguntando – tanto sobre Joplin quanto sobre Machado: como eles foram capazes de fazer algo assim?
Mas, enfim, se uma cantora rouca pode nos deixar extasiados, creio que um dos melhores exemplos que me ocorreu na semana passada foi o show da cantora francesa Zaz, em Porto Alegre. Da outra vez que ela veio, não fui ao show. Mas gostava das suas músicas desde aquela época, principalmente o seu disco com músicas sobre Paris. Talvez um dos discos que mais me agradam as músicas todas.
Zaz (cujo nome é Isabelle Geffroy) veio a Porto Alegre de novo. Cantora do interior da França, inspirada nas canções de Edith Piaf, Charles Aznavour, Claude Nougaro, que um dia deixou a sua cidade, Chambray-lès-Tours, em direção a Paris para tentar a vida cantando, teve a sorte de encontrar o cantor e compositor Raphaël Haroche, que escreveu várias músicas pensando em sua voz. A mesma voz que, diga-se de passagem, rendeu-lhe algumas críticas. O que importa é que ela pegou a música francesa, deu um pitada de jazz, suingue, rouquidão e muita alegria de estar no palco.


Cheguei ao Auditório Araújo Viana ansioso com o espetáculo. Tinha visto algumas cenas no Youtube.com e o show Mise en Scène parecia uma experiência visual interessantíssima. Não estava errado. Com muitas cores, muitas projeções, muito uso do recurso imagético, a construção do show é um espetáculo à parte.
Mas é a Zaz que deixa qualquer um bobo. Se Aristóteles acreditava que cada pessoa tem um direcionamento natural e que a eudaimonia, a felicidade, era fazer aquilo para o que se nasceu, posso dizer que Zaz acertou em cheio. Eu nunca tinha visto ninguém tão feliz em um palco como ela. Há as pessoas que dominam o palco e o conhecem como a palma das suas mãos. A Ivete Sangalo é uma dessas pessoas. Há também aqueles em que você sabe que, mesmo não parecendo, têm o controle sobre tudo o que está ao redor, como no show de comemoração de Caetano e Gil ou em algum espetáculo de Maria Bethânia.
Entretanto, Zaz é feliz demais – e podemos notar isso. Fala desesperadamente, mesmo com a maior parte das pessoas não entendendo direito o que ela está dizendo – um tanto porque não fala francês e outro tanto porque não consegue pegar as frases rápidas e seu sotaque de fora de Paris. Sabe que naquele momento, ela está transbordando felicidade para um monte de gente. Dança loucamente a cada música. E não dança somente para o público, mas também para ela. De vez em quando ela sai de cena e, quando nossos olhos conseguem encontrá-la, está atrás da bateria dançando.
Talvez como uma mulher do século XXI que defende causas, aproveitou sua visibilidade para fazer duas apresentações de ONG’s porto-alegrenses no meio do espetáculo. Fez questão de fazer discurso sobre a importância daqueles trabalhos.
Sabe que aquele palco é o seu lugar e sabe que não quer deixá-lo por nada. Sabe que a sua arte é repleta de beleza. Se não entendemos direito porque algo é considerado belo, se não achamos mais ser possível existir algo bonito em meio ao famigerado século XXI e seu ódio e suas idiossincrasias... escutar a voz rouca de Zaz pode ajudar a compreender o primeiro ponto e amenizar a agonia do segundo.
O palco é tão seu que ela não vai embora nem quando o show acaba. Em Porto Alegre ela ficou depois do show assinando camisetas que lhe eram jogadas, sentada no tablado, enquanto os músicos e o público saiam.
Zaz ajudará a salvar o mundo. Só precisamos de mais Zaz surgindo por aí...


 (Texto publicado originalmente em Jornal Opa! em 03 de abril de 2017: http://jornalopa.com.br/site/colunista/visualizar/id/242/?Para-salvar-o-mundo.html)

domingo, 4 de junho de 2017

Fabíola lê livros de filosofia



Tenho um grande amigo chamado Fábio. Por ironia do destino, namora uma mulher chamada Fabíola. Ela tornou-se uma amiga fundamental e, com ela, posso conversar sobre todos os assuntos que esta coluna receberá com meu nome. Fabíola é portenha e mora – devido ao seu trabalho – um tanto aqui em Porto Alegre e um tanto em Buenos Aires. Um sonho, para mim. Além do fato que de Fabíola lê livros de filosofia.
Quase todas as vezes em que estive em Buenos Aires, dei sorte que a Fabíola estava por lá também. Como o trabalho dela é bem flexível em horários, sempre nos encontramos para passear pela cidade. Brincamos que nos vemos mais lá do que aqui. E eu tenho a sorte de poder ter uma guia que já me mostrou toda a cidade, além de me explicar como funciona a divisão dos números pelas ruas e sua lógica, o que permite que qualquer um saiba em que local da cidade está somente observando os números dos prédios nas ruas.
Foi com ela que eu aprendi que a Feira do Livro de Buenos Aires fica todo ano competindo com a da Cidade do México para ver qual das duas será a maior. A mexicana eu não conheço, mas a portenha eu já fui duas vezes e posso garantir: é uma coisa inimaginável! Sem falar nas presenças: Paul Auster, Coetzee, Saramago, Susan Sontag, Vargas Llosa, Alberto Manguel e Alessandro Baricco esse ano, entre tantas outras personalidades.
Na última vez que estive lá, nos encontramos e fomos conhecer o Once, a parte dos bairros de trabalhadores e almoçamos em um Bodegón tradicional, com cerveja Quilmes e chorizo por 20,00 reais. No caminho, pegando o metro, em determinado momento Fabíola procurou algo em sua bolsa e achou também um livro. Era Cinismos. Retrato de los filosofos llamados perros, do filósofo francês Michel Onfray. Ela me disse que eu precisava ler, porque era muito bom.
Fiquei pasmado com isso. Fabíola é uma leitora voraz. Claramente é interessada em livros de ciências sociais, porque estudara isso na graduação. Mas não trabalha com isso. Ela é analista de sistemas. Mas Fabíola lê livros de filosofia quando não está ocupada.
Desde a primeira viagem que fiz a Argentina, sabia por amigos que lá era um lugar de muitas livrarias. O que é uma maravilha, porque caminhamos por qualquer bairro e, de repente, topamos com uma loja de livros, novos ou usados. Mas também pude notar que as pessoas carregam livros na rua, dentro de suas bolsas e até mesmo os comerciantes de rua, quando não estão atendendo a algum cliente, permanecem em frente aos seus produtos lendo algo.
Certa vez, em uma reportagem na Revista da Cultura (edição 90 – janeiro/2015), o autor, Christian Petermann, trazia um bom argumento sobre os motivos de o cinema argentino ser considerado internacionalmente a frente, por exemplo, em relação ao cinema brasileiro. Um dos motivos era o fato de que os argentinos têm uma média de leitura muito mais elevada que os brasileiros, cujos dados são pífios. Outro fator era a não existência de novelas como as da Globo, que, por terem enredos mais simples, desacostumavam os espectadores brasileiros a tramas mais densas, segundo o autor da reportagem. Essas ideias já faziam muito sentido pra mim, mas ao visitar o país hermano pude comprovar observando os costumes dos habitantes.
Era algo extraordinário ver que minha amiga estava lendo um livro de filosofia enquanto andava de metro, de ônibus ou enquanto sentava em um dos maravilhosos cafés portenhos para tomar algo e comer uma medialuna. Ela me falava que o autor era muito bom, que ele tinha escrito vários livros e que eu iria me interessar muito.
Durante todos esses anos dando aula, sempre defendi com unhas e dentes que meus alunos deveriam ler. Sempre discursei em sala que, em um país que não lê, como é o nosso, os alunos deveriam receber uma educação onde, primeiramente, eles aprendessem a ler e tomassem gosto pela coisa. Por isso sempre indiquei livros relacionados a História como O Chalaça, de José Roberto Torero, engraçadíssimo e prazeroso, para falar do período de D. Pedro I; ou O Xangô de Baker Street, de Jô Soares, mais divertido ainda, sobre o período de D. Pedro II. Para alunos que, em sua maioria, não fazem a menor ideia de como começar a ler, isso pode ajudá-los. Machado de Assis foi e sempre será o nosso maior prosador, mas um aluno de Ensino Médio que não entende o que é ironia fina – porque está envolto em uma série de coisas bizarras e simples na internet – não poderá compreender a graça e beleza do texto machadiano.
Em um país como o nosso, há: 1º) que fazer com que as pessoas comecem a ler; 2º) que não parem de ler; e 3º) que abram as possibilidades para ver Machado – e Drummond, Guimarães Rosa, João Cabral, Luiz Ruffato etc – como uma grande aventura depois de um tempo de leitura.
Assim vamos mudando, até que um dia possamos ver as pessoas lendo filosofia nos bancos dos ônibus ou dos metros. Talvez isso melhore nossa política, nosso cinema (que já avança muito nos últimos anos!), nossos alunos enquanto pessoas críticas e conscientes e não apenas como seres rasos em argumentação e compreensão de mundo.
E quem sabe as coisas mudem tanto, que a Fabíola não possa mais responder quando alguém lhe diz que nós temos 5 Copas do Mundo mostrando uma mão aberta: “E nós temos 5 Prêmios Nobel”. A conversa geralmente acaba por aí...


(A tempo: deveriam ter tido mais 3, com Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares.)