Começo
essa coluna por uma historieta retirada do belíssimo livro de Italo Calvino, Por que ler os clássicos, que por sua
vez afirma que retirou de um livro de Cioran, sobre Sócrates antes da sua
morte. Disse que antes de morrer, “enquanto era preparada a cicuta, Sócrates
estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’,
perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’”, teria respondido o
grande filósofo. E por que citar essa passagem nesse momento? Pelo fato de que
perguntaram para Calvino sobre os possíveis motivos de se ler um clássico, ao
passo que sua mais convincente resposta é: “a única razão que se pode
apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”.
Mas
essas passagens, obviamente, são poéticas e para um possível mundo prático –
esse famigerado século XXI que vivemos – essas respostas não fariam muito
sentido. Acostumando que estou a lidar com alunos na adolescência ou início da
vida adulta, a maior parte deles – vejam, digo a maior parte, não a totalidade
e nem uma pequena parcela; não fomento extremismos de debate – voltando: a
maior parte deles não tem interesse em ler clássicos da literatura, seja
mundial seja brasileira.
É
que o problema, para mim, é maior: a maior parte deles não quer ler. E o que
quero dizer com isso é que a literatura está longe deles, é alheia àquilo que
eles querem discutir no momento e, principalmente, não parece estar relacionada
com a moral cidadã do novo século. Explico: eles aprendem que não é necessário
ler para ser um grande sujeito nos dias de hoje, e ser um grande sujeito é
simplesmente entrar dentro de uma roda que está circulando e dar continuidade
ao seu movimento. Em outras palavras, cada vez mais os jovens querem apenas
adequar-se às novas profissões do momento, manter suas redes sociais ativas e
aproveitar os finais de semana da maneira mais festiva possível. E eu não estou
aqui me colocando contra essas posições, muito pelo contrário, sempre acreditei
na vida enquanto uma eterna busca pelas realizações pessoais que pudessem
encaminhar para uma felicidade efetiva. Mas hoje, como costuma-se brincar,
criticando as redes sociais, é melhor se ter uma vida feliz no Facebook e no
Instagram do que de fato viver de maneira feliz em suas ações pessoais.
Mas
o que isso tem a ver com literatura ou com Machado de Assis, que aparece no
título desse texto?
Vejamos:
Machado de Assis é considerado um autor maravilhoso para muitos estudiosos,
para muitos intelectuais, para muitos. Alberto Manguel, que é um leitor voraz
(fora os “olhos” de Jorge Luis Borges em sua juventude, quando o grande
escritor argentino já estava cego) e também um excelente escritor, tanto de
obras de ficção quanto de crítica literária, sempre afirmou que Machado deveria
ser muito mais lido na América Latina, porque foi um dos principais autores que
lera em sua vida e um precursor fundamental do que a América Latina produziria
no século XX. E não podemos negar que nossas instituições educacionais fazem um
trabalho que garante que os alunos das escolas escutem, pelo menos umas 5 vezes
em sua vida escolar, o nome de Machado de Assis. Mas será isso o suficiente ou
o certo a se fazer?
Penso
que a literatura tem um poder transformador pessoal que é fabuloso. Tanto
quanto a arte de um modo geral. Não há como passar incólume à construção
artística em seu modo mais potente, como, por exemplo, a belíssima letra que
diz que “respeito muito minhas lágrimas, mas ainda mais minha risada”. Se já
sabemos que a arte existe porque a vida não basta, acredito piamente que toda
boa literatura é ontologia. Toda boa literatura nos explica melhor do que
qualquer outra forma de construção cognitiva. E Machado de Assis era um
filósofo, travestido de escritor brasileiro. Ele é o clássico nosso de cada
dia, que nos expos de uma maneira que ninguém fez antes e poucos outros fizeram
depois em território tupiniquim. Portanto, ele é aquele que tem que ser lido,
porque é melhor lê-lo do que não lê-lo.
Mas
o que estamos fazendo nesse país, de um modo geral, está indo contra o que a
literatura precisa. Frente a uma educação de tão pouca qualidade, seja pública
ou privada, estamos perdendo a batalha para os diversos interesses que os
jovens têm nesse momento e que estão ligados a um mundo tecnológico. Vocês,
meus caros leitor e leitora, acham mesmo que um jovem de 16 anos quer saber o
que é “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”? Pois posso lhes garantir que
dessa oração, os alunos não sabem o que são 75% das palavras presentes. Sou
pessimista nesse ponto e acredito que a única palavra compreensível para um
aluno nessa idade é “olhos”.
Eu
creio que o trabalho atual deva passar por um revolução no ensino da
literatura. Esta deve ser fomentada, instigada no aluno. Mas não da forma como
ofereceram à minha irmã quando estava buscando uma escola para as minhas
sobrinhas. A coordenadora de ensino veio toda feliz anunciar que eles tinham um
programa de incentivo à leitura muito bom. Consistia em dar uma medalha ao aluno
que mais lesse livros e que estivesse registrado na biblioteca da escola. Cada
vez que o aluno pegasse um livro, ficaria registrado. O aluno com mais
registros ganhava a “medalha de leitor do mês”. Como se quer tratar a arte como
se tratam as coisas todas no nosso mundo moderno: através da competição?
Pergunto-me onde foi parar a ética nesse momento. Como uma instituição de
ensino pode errar tanto, ao fomentar uma competição, acreditando que a
literatura pode ser mensurada na vida de uma pessoa através do número de livros
que ela lê por mês? E aqueles leitores iguais a mim, que demoram-se às vezes
mais de 30 minutos em uma só página? Por essa instituição, saí perdendo. Por
mim, na minha percepção, saí ganhando. São visões distintas sobre as coisas
todas.
Mas
então essa revolução se constituiria de quê? Acredito que em um país como o
nosso, em que as pessoas não leem, o ideal seria começar a fomentar a leitura
pessoal a partir do gosto. Gosto do movimento de um colégio que conheço em que
as leituras dos alunos são “Maus”, de Art Spiegelman, “Persépolis”, de Marjane
Satrapi, ambas graphic novels. E não
para por aí: também leem alguns textos de Tolstoi, “É isto um homem?”, de Primo
Levi, ou então “Terra Papagali”, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius
Pimenta. São textos que podem interessar mais aos alunos do que “Senhora”, de
José de Alencar.
Mas
vejamos bem: não estou dizendo que José de Alencar não deva ser lido. Ou então
Macunaíma ou os romances de Machado de Assis. Apenas estou tentando afirmar que
os nossos alunos têm de começar a ler por gosto. É preciso que eles consigam
perceber na literatura as possibilidades de um mundo novo. De um mundo
prazeroso. Eles têm de notar que pode-se às vezes gastar uma hora do tempo
lendo as aventuras de “Game of Thrones” ou de “Harry Potter” já que eles gastam
mais do que esse tempo apenas fazendo a rolagem de um aplicativo de celular
para dar joinhas e corações em fotos. A literatura exige, muitas vezes,
maturidade. E os clássicos precisam de uma maturidade maior ainda. Machado de
Assis é um desses casos.
Meu
exemplo: li Machado quando estava no Ensino Médio e lembro-me que tinha gostado
bastante. Mas já lia muito naquela época. Meus amigos, em sua maioria, não
tinham tido a mesma percepção que eu do texto machadiano. Entretanto, quando
estava no mestrado, com um pouco mais de tempo, resolvi reler Machado para
desestressar das agruras da pesquisa que eu sofria. Recordo-me efusivamente que
tive que parar constantemente a leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
porque não podia segurar o riso. Gargalhava, na verdade. Para mim, Machado tem
uma ironia como muito poucos conseguiram ter. Ele criticava a sociedade carioca
do século XIX, colocando-a em situações risíveis a partir de seu traço irônico,
e a sociedade não tinha a menor ideia de que isso estava acontecendo. De um
brilhantismo sem igual, Machado soube fazer a melhor análise sociológica sobre
o Brasil e, principalmente, o Rio de Janeiro do século XIX. Mas eu só pude
fazer isso porque reli Machado quando estava com 23 anos de idade. E porque já
era leitor. E, talvez, porque nunca me dei muito bem com a tecnologia.
Mas
o que importa, de fato, é que façamos que as pessoas tenham acesso à
literatura, tentando demonstrar que ela pode ser um mundo incrível, de
aventura, de amor, de maravilhas, de aprendizado, de tudo o que se possa
imaginar. Se conseguirmos fazer com que as pessoas percam o medo da leitura –
ou, pelo menos, não vejam na leitura uma inimiga de suas redes sociais – já
faremos com que as gerações futuras saibam e gostem de ler. E instigando cada
vez mais os mistérios da literatura, devemos discutir a necessidade de ler os
clássicos, porque se são clássicos, são necessários para o entendimento do que
é o ser humano. Não adianta falar de Shakespeare para quem nunca leu nem uma
coluna de jornal ou um gibi. Será como tentar explicar a existência dos números
inexistentes para quem não sabe fazer uma simples regra de três.
Isso
tudo faz parte de um processo. É a construção de formiguinha. Ou do tijolinho
após tijolinho, fazendo a base até chegar ao teto. O que importa é que cada um
de nós – os que lemos e vemos beleza na leitura! – tentemos das mais diferentes
maneiras (menos a impositiva!) demonstrar que a literatura pode ser
encantadora. Que tal falarmos de Segundo Reinado e sua crise a partir do livro
“O Xangô de Baker Street”, de Jô Soares, que fez simplesmente, em meio a crise
do Império brasileiro, aparecer em nossas terras Sherlock Holmes, para resolver
casos praticados por um serial killer? Depois disso, que tal mostrar o que
acontecia nessa sociedade, demonstrando todas ruínas humanas causadas por
pessoas estranhíssimas, a partir do que um sujeito que já morreu tem a dizer?
Basta indicar o “Memórias Póstumas...”, do nosso Machado.
Da
mesma forma que as ciências humanas notaram que era preciso uma integração de
disciplinas no século XX para poder fazer uma compreensão mais plural sobre as
ações humanas, talvez seja necessário para salvar os clássicos da literatura a
uso de uma primeira fase, baseada no encantamento literário nos alunos, para a
partir daí irmos construindo nosso teto de nossa própria casa. Machado
sobreviverá sempre porque no mundo, frente às catástrofes, sobrevivem sempre as
baratas e as boas histórias. Mas nós podemos ajudar a salvar o mundo dos
perigos expostos em “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury, quando os livros
começaram a ser queimados porque ameaçavam a organização política existente,
afinal, os livros fazem os homens conhecerem coisas e pensarem. Como faremos
isso? As maneiras são várias. Comecemos a discuti-las. Comecemos a pensá-las.
Eu faço minha parte quando não deixo as opiniões rasas sobre Machado de Assis
dominarem uma discussão perto de mim. A famosa ideia de quem leu obrigado pelo
sistema de ensino, quando era adolescente, e formulou uma opinião negativa
sobre Machado, para mim está totalmente equivocada sobre como funciona a
própria construção do conhecimento.
É
necessário, pois, salvar Machado, de alguma forma, mas que seja urgente.
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